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A aplicação em reverso das penalidades contratuais de mora não leva ao equilíbrio contratual
30/08/2016

Nos contratos de compra e venda de imóveis entre compradores/consumidores e incorporadoras, é comum ser inserida a chamada cláusula penal, que poderá ser exigida em caso de descumprimento contratual por uma das partes.

Da mesma forma, tornou-se comum também, em ações judiciais, o questionamento de que a ausência da cláusula penal em relação à incorporadora levaria ao desequilíbrio contratual, sendo postulado a aplicação em reverso da cláusula penal como forma de indenização em caso de atraso na entrega do imóvel.

É impossível negar que o atraso na entrega de um imóvel adquirido pode trazer prejuízos ao patrimônio do comprador, que despendeu significativo numerário para a aquisição do imóvel, seja como objeto de moradia, seja para simples investimento.

O objetivo do presente artigo não é questionar o cabimento de indenizações em decorrência do atraso da entrega do imóvel, e sim debater a indevida interferência do Judiciário nos contratos privados.

O Superior Tribunal de Justiça tem consolidado entendimento de que é possível a aplicação em reverso das penalidades contratuais de mora, inicialmente previstas em contrato apenas em relação aos adquirentes, sob o principal argumento de que se estaria buscando o equilíbrio contratual.

Um dos julgados a enfrentar o tema foi o REsp 1536354/DF, em que o ministro Luis Felipe Salomão registrou em seu voto que se mostra abusiva a prática de se estipular penalidade exclusivamente ao consumidor, devendo a mesma multa incidir em face do vendedor, caso este, esteja em mora:

(...)

4. A cláusula penal inserta em contratos bilaterais, onerosos e comutativos deve voltar-se aos contratantes indistintamente, ainda que redigida apenas em favor de uma das partes. (...)

 

Ora, com a devida vênia ao entendimento firmado pelo e. Superior Tribunal de Justiça, entende-se que este pode e deve ser superado.

Outro argumento utilizado por Julgadores para a reversão da cláusula penal em face da incorporadora, é o artigo 51, IV do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

[...]

 

IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja, incompatíveis com a boa-fé ou a equidade (BRASIL, 2002).

 

Entretanto, em momento algum o referido dispositivo autoriza o julgamento por equidade pelo Judiciário. Pelo contrário: o dispositivo apenas autoriza, se for o caso, a mera declaração de nulidade de eventual dispositivo que seja abusivo.

Isto que dizer que não existe, na legislação vigente, dispositivo legal que autorize o Judiciário um terceiro na relação contratual particular a criar cláusulas em prol do consumidor simplesmente em razão do suposto desequilíbrio contratual.

Ademais, observa-se que a reversão da cláusula penal em face da incorporadora não restabelece o procurado equilíbrio contratual. Explica-se.

As duas partes contratantes possuem obrigações e responsabilidades de naturezas distintas: ao consumidor, cabe o adimplemento das parcelas ajustadas pela construção do imóvel, e à incorporadora, cabe a construção e entrega do imóvel na forma e no prazo contratados.

Desse modo, ao aplicar em reverso a cláusula penal em favor do consumidor, além da criação de uma nova cláusula não acordada entre as partes, o Judiciário estaria ensejando uma penalidade desproporcional para a incorporadora em razão de sua obrigação diversa.

Isso porque a cláusula penal nos contratos de compra e venda de imóveis estabelece que, em caso de atraso no pagamento das parcelas pelo consumidor, incidirão multa e juros sobre o valor em mora. Por outro lado, quando realizada a reversão da cláusula em favor do consumidor, aplica-se a mesma penalidade sobre o valor adimplido pelo consumidor até a data prevista para a entrega ou até mesmo sobre o valor do imóvel.

Assim, não se faz necessária uma longa operação aritmética para perceber que a multa em favor do consumidor se torna excessivamente onerosa para a incorporadora. Não que se falar em equidade entre as partes, uma vez que, na tentativa de restabelecer o equilíbrio contratual, cria-se um novo desequilíbrio contratual em detrimento do outro contratante: incorporadora.

É importante registrar que, ao contrário do que estabelece o parágrafo único do artigo 416 do Código Civil, o precedente do Superior Tribunal de Justiça ainda admitiu a cumulação da cláusula penal, com perdas e danos. Isto significa dizer que o adquirente, além de ter em seu favor cláusula reversa nunca estipulada e muito mais onerosa, ainda terá em seu benefício a indenização pelo atraso.

Em algumas condenações, incorporadoras chegaram a ser condenadas, em razão do atraso, à reversão da cláusula de juros de 1% e multa de 2% sobre o valor do imóvel pelos meses de atraso até a entrega das chaves, lucro cessante equivalente a 1% sobre o valor atual do imóvel pelos meses em atraso até a entrega das chaves, mais indenização por dano moral. São valores que, em alguns casos, se aproximam do valor da unidade adquirida e sequer quitada.

O que se vê, hoje, é uma clara indústria da indenização pelo atraso na entrega de um empreendimento. Não seria exagero afirmar que, em determinadas situações, o atraso na entrega da unidade se torna muito mais lucrativo do que o recebimento da unidade imobiliária no prazo estabelecido em contrato.

As indenizações decorrentes dos precedentes citados, cumuladas com a alta carga tributária, entre outros custos impostos às empresas brasileiras, acabarão por dificultar a continuidade do negócio imobiliário em nosso país.

Diante das premissas apontadas, demonstra-se imperiosa a reversão do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, de modo a evitar os excessos e ilegalidades discutidos anteriormente. É necessário afastar a possibilidade de criação de cláusula penal inexistente, de modo que o consumidor, sentindo-se lesado, limite-se a buscar indenização por perdas e danos caso não pactuada previamente entre as partes eventual multa.

 

REFERÊNCIAS

 

 

BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990.

 

             . Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.   Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002.

 

             . Superior Tribunal de Justiça.  REsp 1.536.354 - DF   2015/0133040-3. Relator: min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Terceira Turma. Julgado em 07/06/2016, Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 jun. 2016.

 

CENEVIVA, Walter. Publicidade e Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 68.


Raphaela Batista de Oliveira

Advogada