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Reflexões sobre o STF e as Atribuições de Fiscalização da Receita Federal
29/02/2016

Ao passo em que avançam as tecnologias e se ampliam os horizontes de velocidade e eficiência das comunicações, é interessante perceber que o Estado, em muitos momentos, parece estar parado no tempo, mas em outros caminha a largos passos sob o discurso da inovação – muitas vezes esbarrando nas limitações impostas a si.

Nessa dicotomia – não exclusivamente derivada do processo de evolução das instituições e das próprias sociedades – entre limites e inovações, sob a égide do rule of law presumir-se-ia que as mudanças promovidas pelo Estado sempre fossem pautadas em consonância com a norma posta, existindo especial cautela com a letra constitucional. Nada surpreendente, tendo em vista que a própria tributação, por exemplo, é o confisco legalizado do patrimônio dos cidadãos com a justificativa de financiar as atividades do Estado – o que significa que o poder de tributação do Estado deve ser claro e inequívoco antes mesmo que o dinheiro do contribuinte saia de seus bolsos.

O que acontece, então, se um Estado, por meio de seu órgão administrativo de função arrecadatória, tenta romper uma barreira trazida pela sua própria Constituição? Presumir-se-ia o óbvio de um rule of law: obedece-se à disposição constitucional, interpretando-se quaisquer atos se tomando por parâmetro a premissa normativa. O oposto seria simplesmente o afastamento da norma em favorecimento ao subjetivismo interpretativo – afinal perde-se o elemento objetivo em que se baseia a interpretação e se adota um critério extremamente instável porquanto suscetível às intempéries do humor e da opinião social ou, ainda mais grave, da sede arrecadatória do Estado.

Foi exatamente esse o ocorrido na última semana, e com a – já nem tão - imponente chancela do Supremo Tribunal Federal.

Em mais um caso que não revelava a menor dificuldade interpretativa em face da letra constitucional, o Supremo Tribunal Federal, por maioria (faltam os votos dos ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski), entendeu que a Administração Tributária pode, sim, realizar a quebra de sigilo bancário dos contribuintes sem autorização do Judiciário. A justificativa? A Administração Tributária tem “obrigação” de sigilo fiscal, tratando-se de uma transferência de informações.

Aos que adotam a leitura da Constituição Federal física, que se apressem a reescrever o art. 5º, X ou XII da CF/88[1] (a depender da corrente doutrinária adotada, a exemplo dos professores Manoel Ferreira Filho e Tércio Sampaio Ferraz Júnior). Para quaisquer dos incisos adotados, porém, sustenta-se que, segundo o STF, é constitucional o art. 6º da Lei Complementar nº 105/01[2], segundo o qual pode a Autoridade Tributária ter acesso aos dados bancários dos contribuintes bastando existir processo administrativo ou procedimento fiscal em curso.

Longe de se dizer que não deve o Fisco zelar pelo cumprimento das obrigações tributárias, é necessário que se pontue, porém, quão absurda é a ideia de uma gama virtualmente ilimitada de informações num País onde os Fiscos (federal, estaduais e municipais) estão mergulhados em casuísmos, arbitrariedades e em verdadeiros lobbies (art. 149-A da Constituição Federal traz uma vaga lembrança).

Em que pese a existência do elemento humano inúmeras vezes sendo o responsável pelos atos indevidos das instituições (in casu, os Fiscos), é exatamente pela ampla liberdade de um Poder Público que nascem as violações às liberdades individuais e/ou coletivas, o que agrava a possibilidade e amplitude da atuação antiética de alguns que não honram os cargos que ocupam nos órgãos públicos.

A atuação das cortes superiores pátrias em favor dos interesses do Fisco não é surpreendente, tampouco algo recente: da mesma maneira como sistematicamente tem o STF revisitado (para pior) várias premissas de direitos fundamentais nos últimos anos, também assim tem agido há mais tempo nos conflitos que tenham direta – e algumas vezes indireta – relevância para as atuações do Fisco. Mesmo Carlos Maximiliano, em sua obra sobre a Hermenêutica Constitucional[3], não haveria de antever real militância do STF em favor das instituições estatais, muito menos que tal corte emplacaria a interpretação axiológica de uma maneira tão distorcida de suas funções originais.

Em excelente reflexão, o doutrinador supra, na mesma obra, afirma ainda que:

"Forte é a presunção de constitucionalidade de um ato ou de uma interpretação, quando datam de grande número de anos, sobretudo se foram contemporâneos da época em que a lei fundamental foi votada. Minime sunt mutanda, quoe interpretationem certam semper habuerunt. Todavia, o princípio não é absoluto. O estatuto ordinário, embora contemporâneo do Código supremo, não lhe pode revogar o texto, destruir o sentido óbvio, estreitar os limites verdadeiros, nem alargar as fronteiras naturais".

É evidente que não existe cabimento em se interessar pelo sistemático afastamento da segurança jurídica, seja pela edição de normas notadamente inconstitucionais, seja pelo proferimento de decisões que atinjam frontalmente a Carta Magna. Ao mesmo tempo, é evidente que não é a Constituição um instrumento inatacável, imutável compêndio de preceitos fundamentais para o Estado brasileiro. Contudo, o enfrentamento das premissas constitucionais não pode ser realizado de maneira a negar-lhes existência ou mesmo em inovar sua interpretação ausente uma perspectiva estritamente objetiva.

Imperioso rememorar que a norma infraconstitucional é um instrumento pelo qual se realizam os fins da Constituição, e como tal não pode lhe ser estranha. A consequência da dissonância entre norma infraconstitucional e Carta Magna não pode ser outra senão o de sua inconstitucionalidade, como bem destaca Paulo Bonavides[4] ao dissecar posicionamento do Tribunal Constitucional Federal alemão:

"Em rigor, não se trata de um princípio da interpretação da Constituição, mas de um princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com a Constituição.

Método especial de interpretação, floresceu basicamente durante os últimos tempos à sombra dos arestos da Corte Constitucional de Karlsruhe, na Alemanha, que o perfilhou decididamente, sem embargo das contradições de sua jurisprudência a esse respeito.

A Verfassungskonforme Auslegung, consoante decorre da explicitação feita por aquele Tribunal, significa na essência que nenhuma lei será declarada inconstitucional quando comportar uma interpretação ‘em harmonia com a Constituição’, e, ao ser assim interpretada, conservar seu sentido ou significado.

Uma norma pode admitir várias interpretações.  Destas, algumas conduzem ao reconhecimento da inconstitucionalidade, outras, porém, consentem tomá-la por compatível com a Constituição. O intérprete, adotando o método ora proposto, há de inclinar-se por esta última saída ou via de solução.  A norma, interpretada conforme a Constituição, será, portanto, considerada constitucional.  Evita-se por esse caminho a anulação da lei em razão de normas dúbias nela contida, desde naturalmente que haja a possibilidade de compatibilizá-las com a Constituição".

Por ironia, o próprio STF, em relativamente recente decisão julgando o RE nº 389.808-PR de relatoria do Ministro Marco Aurélio, julgou que o Fisco não poderia quebrar o sigilo bancário sem a intervenção do Poder Judiciário, demonstrando (à época) a existência de controvérsias no que se refere à própria constitucionalidade do art. 6º da LC 105/01.

Enfatize-se que a tax compliance, proposta em inúmeros instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil, em momento algum pode se confundir com prerrogativas ilimitadas de um Fisco. Dotar o Estado de ferramentas que lhe permitam fiscalizar o cumprimento de obrigações tributárias não passa obrigatoriamente por mais poderes, mas sim pela otimização das estruturas já existentes – quando estritamente necessário, aí sim, adotando-se novas prerrogativas.

A análise não comporta outra conclusão – sob a ótica acima – senão a de que o Supremo Tribunal Federal traz uma inconsistência interpretativa à análise da matéria. Em que pesem os argumentos do Fisco (chancelados pela maioria do STF), é claro o art. 5º, XII, da CF/88 no sentido de ser prerrogativa reservada ao Judiciário a eventual quebra de sigilo bancário (vide a necessidade de ordem judicial), o que automática e implicitamente desautoriza o Fisco a deter essa mesma prerrogativa. Fica aberta, assim, uma perigosa porta aos contribuintes, cada vez mais acuados por uma sede arrecadatória crescente de um Estado em franca desorganização fiscal e econômica e por um Fisco com prerrogativas tão ascendentes quanto as arbitrariedades reiteradamente cometidas em desfavor dos contribuintes.


[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[...]

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

 

[2] Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.

 

[3] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9º ed. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 1979.P. 1.

[4] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo. Malheiros, 1996. P. 474.




Victor Bastos da Costa

Advogado