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Cível | A proteção do consumidor contra o superendividamento – Lei nº 14.181/2114/07/2021
A Lei do Superendividamento (n.º 14.181/21),
que entrou em vigor no dia 02 de julho de 2021, trouxe em seu bojo alterações
significativas ao Código de Defesa do Consumidor e ao Estatuto do Idoso, para
incluir disposições de proteção contra o endividamento insuperável e definir
formas de resolução e liquidação de dívidas contraídas. Buscou-se transformar
em lei alguns parâmetros de educação financeira a consumidores e prevenir a
exclusão social de pessoas endividadas, criando uma espécie de “recuperação
judicial” para pessoas físicas.
Com base nas alterações da nova lei, o Código
de Defesa do Consumidor agora define o superendividamento (Art. 54-A, §1º) como
“a impossibilidade manifesta de o consumidor
pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo,
exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial”. Nesse
contexto, entende-se como dívida todos os compromissos financeiros assumidos
pelo consumidor, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de
prestação continuada (Art. 54-A, §2º).
O foco legal na manutenção da integridade
financeira e mínimo existencial do consumidor acabou por trazer ao fornecedor
de produtos e serviços alguns ônus a serem observados, em respeito aos
princípios de ampla informação e proteção ao consumidor.
Os contratos de consumo
não podem condicionar ou limitar em qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder
Judiciário (Art. 51, XVII). Desta disposição é possível concluir que cláusulas
de eleição de arbitragem para resolução de conflitos contratuais passam a ser totalmente
nulas, contrariando o entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre a
validade da cláusula em contratos de adesão.
Também passa a ser nula qualquer cláusula que
estabeleça prazo de carência em caso de inadimplência das prestações mensais ou
impeça o restabelecimento integral dos direitos do consumidor de seus meios de
pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os credores (Art. 51,
XVIII).
O fornecedor de produtos e serviços fica
obrigado a informar ao consumidor, no momento da oferta de crédito ou
celebração de contratos, acerca do custo efetivo total da dívida, taxa mensal
de juros aplicável, juros de mora e totalidade dos encargos de qualquer
natureza e o valor de cada prestação. Também se torna obrigatório informar o
prazo de validade da oferta, que deve ser de, no mínimo, dois dias. Qualquer
oferta deverá conter nome completo e endereço, inclusive eletrônico (e-mail) do
fornecedor (Art. 54-B, incisos I, II, III, IV e V; §1º).
Nas ofertas de crédito, deve o fornecedor ou
intermediário explicar com clareza ao consumidor sobre a natureza e modalidade
do crédito, todos os custos incidentes, e consequências genéricas e específicas
do inadimplemento, levando em consideração a idade do cliente. Deve-se avaliar
também as condições de crédito do consumidor, com estudo de cadastros de
inadimplência, nos limites do Código de Defesa do Consumidor e da Lei Geral de Proteção de Dados. A desobediência destes
deveres deixa o fornecedor vulnerável à possibilidade de revisão judicial dos
juros, dos encargos e quaisquer acréscimos ao valor principal da dívida (Art.
51-D, parágrafo único).
Fica o fornecedor proibido de (i)
realizar novas cobranças ou débito em conta de qualquer quantia contestada pelo
consumidor em compras realizadas com cartão de crédito ou similar enquanto não
solucionada a controvérsia, desde que notificada a administradora do cartão com
antecedência; (ii) recusar entregar cópia da minuta do contrato
principal de consumo ou do contrato de crédito; (iii) dificultar, em
caso de utilização fraudulenta do cartão de crédito ou similar, que o
consumidor peça e obtenha, quando aplicável, a anulação ou o imediato bloqueio
do pagamento (Art. 54-G).
Superadas as obrigações atribuídas ao
fornecedor de produtos e serviços, a lei cria ao consumidor superendividado a
possibilidade de instaurar judicialmente um processo de repactuação de dívidas.
Neste processo, será realizada a tentativa conciliatória entre o consumidor e
seus credores, com elaboração de plano de pagamentos com prazo máximo de cinco
anos, preservado o mínimo existencial do devedor (Art. 104-A, §1º). No caso de
insucesso na tentativa conciliatória, o consumidor pode solicitar que o Juízo
revise e repactue dívidas mediante plano judicial compulsório (Art. 104-B).
Apesar de todas as garantias e proteções
criadas em benefício dos consumidores superendividados, cabe ressaltar que a
lei não protege devedores que contraírem dívidas em manifesta fraude ou má-fé. Por
exemplo, contratos celebrados com objetivo de nunca serem pagos; aquisições ou
contratações de produtos/serviços de luxo de alto valor, incompatíveis com o
poder de compra do consumidor (Art. 54-A, §3º). Tais disposições são positivas
aos fornecedores de produtos e serviços, mas abrem margem para debate sobre o
conceito de “item de luxo”. Por exemplo, contratos de venda de imóveis possuem
alto valor agregado, mas não necessariamente configuram itens luxuosos. Além
disso, a lei deixa ainda ao fornecedor credor o ônus de comprovar o dolo do
consumidor na celebração do contrato com propósito de não pagar.
Por fim, em benefício do fornecedor de
produtos e serviços, a nova Lei determina que “não
constitui crime a negativa de crédito motivada por superendividamento do idoso”
(Art. 96, §3º do Estatuto do Idoso – Lei n.º 10.741/2003).
Os efeitos da nova lei não retroagem aos contratos
celebrados antes de sua vigência. Estes, desde que alinhados a todas as demais
legislações pertinentes, continuam válidos em todas as suas cláusulas. Porém,
quaisquer efeitos produzidos por estes contratos após a vigência da lei devem
observá-la.
Pelo estudo da Lei, parece ser factível
entender que ambas as partes contratantes (fornecedor e cliente) passam a
dividir a responsabilidade pela educação financeira do consumidor. O legislador
tratou de transferir ao fornecedor a obrigação de estudar com maior cautela a
capacidade financeira do potencial comprador antes de lhe ofertar créditos,
compras a prazo e operações de alto valor, bem como educá-lo sobre todos os
riscos, sob pena de arcar, mesmo que parcialmente, com os danos derivados de
eventual inadimplência.
Caberá aos fornecedores então equilibrar
diversas leis. É necessário estudar o poder de compra do consumidor sem violar
os limites da Lei Geral de Proteção de Dados, os princípios do Código de Defesa
do Consumidor e mesmo a dignidade da pessoa humana, evitando discriminações
ilícitas ou negativas de crédito baseadas em critérios abusivos de análise,
tudo com objetivo de garantir que as dívidas assumidas pelo consumidor possam ser
quitadas regularmente.
Marcelo Carvalho da Silva Mayo
Contencioso Cível Especializado |